sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Linhagem no Kung Fu: uma problemática

O que é uma linhagem em Kung Fu?

Linhagem: série de gerações; linha de parentesco; genealogia, estirpe (Dicionário Online).

Eis o significado formal de linhagem. Por si só, seu significado comprova sua importância. Mas isso não exclui uma problematização quanto ‘o modo com que se constituem, se tratam e se utilizam determinadas linhagens no Kung Fu’ a partir de seus sifu’s (mestres ou professores) e suas ‘escolas’.

Uma linhagem é constituída de heranças entre gerações, onde um patriarca ou uma matriarca, ou seja, os entes mais velhos, são supostamente mais conhecedores dos conteúdos ou conhecimentos acumulados de seus ancestrais. Então, uma linhagem está diretamente ligada a ancestralidade, neste caso, a partir de um ‘sobrenome’ que, em tese, deve trazer em si certos conhecimentos. Conhecimentos estes que constituem ou compõem aquilo que chamamos de linhagem. Em suma, uma linhagem é como uma tradição, que traz em si tradições, conhecimentos, conteúdos e saberes desenvolvidos ao longo do tempo, acumulados, cultivados e repassados de geração para geração, a modo de manter vivos certos saberes (tanto práticos quanto teóricos) e certas práticas.

Saberes e/ou conhecimentos quando passados de uma geração para outra, inevitavelmente se transformam (pois o tempo e influências externas agem sob estes saberes), geralmente em detalhes e quase nunca radicalmente, mas se transformam, e isso é fato inegável. Portanto, dada esta transformação, dá para se dizer que não existe uma ‘pureza’ nestes conhecimentos ou saberes. Quando não destoa muito do ‘conhecimento original’ (questão mais de essência do que de técnica – eis a questão!), podemos dizer que continua sendo uma linhagem, a mesma linhagem, isso se o receptor, aluno, irmão ou discípulo, for reconhecido e ‘autorizado’ pelo mestre (que também fora autorizado outrora por seu antigo mestre, patriarca ou matriarca) em se tornar também um discípulo, ou seja, futuro mantenedor e transmissor do conhecimento de tal linhagem. Nisso, temos aqui certa hierarquia e ‘controle’ (além de organização) na continuidade deste ‘processo’ que é o de manutenção destes saberes ou conhecimentos.

Linhagem como controle do conhecimento

Pois bem, neste primeiro momento, conceituei, discuti e/ou teorizei sobre o significado de linhagem no Kung Fu, a partir de seu uso mais comum pelo menos, já apontando a problemática. Agora vou tratar de problematizar o assunto, a partir de dado contexto.

Certo da importância da existência das linhagens (o que é evidente e foi abordado brevemente no título anterior), como estudante/praticante e professor de Kung Fu (Wing Tjun), Chi Kung e Tai Chi Chuan (estudante/praticante), tive cá minhas experiências com diferentes sifu’s (professores e/ou mestres) de diferentes sistemas ou estilos e escolas de Kung Fu (além do Chi Kung e do Taiji). Nisso, pude experimentar e perceber as diferenças nos modos de se conceber e praticar esta(s) arte(s). Dedico-me, já faz alguns anos, além de praticar, a pesquisar sobre as linhagens, sistemas e/ou escolas de Kung Fu que me cativam e me dizem respeito. Neste caminho, a problemática que envolve as ‘linhagens’ (um território perigoso, porém, inevitável) me veio à mente. Ao tempo em que as linhagens, quase que naturalmente, servem para manter ou cultivar certos conhecimentos, elas também podem ser formas de controle e poder. Quando um mestre se diz representante deste ou daquele estilo, sistema e/ou escola de Kung Fu, detentor do conhecimento ancestral, único responsável por sua transmissão ‘original’, de certa forma ele está impondo uma autoridade sobre os demais. Se houver bom senso, honestidade e realismo nesta fala, aí tudo bem. O problema é quanto isso se torna ‘estacionamento’, comodidade, ideologia. Ou seja, quanto é usado para a manutenção, não do conhecimento, mas da autoridade, hierarquia e/ou em casos extremos, do autoritarismo sob o conhecimento e sob o outro.

Algo difícil de ser dito, mas necessário: grande parte das escolas que se dizem da ‘linhagem’ Ip Man, do sistema Wing Chun de Kung Fu, por exemplo, não o são. Isso é muito usado como discurso ou marketing – contanto que o GM Ip Man é o mais popular (ou popularizado?) mestre do ‘estilo’. Eu, por exemplo, tive contato e estudei com professores provindos da ‘linhagem Ip Man’, própriamente dito do sifu Wong Shun Leung, mas não diretamente com ele, mas com alguém que aprendeu com alguém que aprendeu com o mestre em questão. E a questão é: isso significa que meu professor era da linhagem Ip Man? Ou da linhagem Wong Shun Leung? Por isso, nunca ousei dizer que tenho uma linhagem em específico no Wing Chun - quem dirá que represento a ‘família’. Tento ser sincero ao máximo com a realidade, com a história, com o conhecimento e com meus irmãos e alunos de arte.

Acontece que, muitos mestres ou professores, muitas escolas, utilizam-se da linhagem para controlar o sistema, assim como, controlar seus estudantes/alunos, e assim, controlar o próprio conhecimento, como detentores exclusivos deste saber (o que, geralmente, não é verdade). Daí surgem as disputas e conflitos entre escolas que reivindicam a mesma maestria e linhagem. Daí também é que muito do conhecimento pode se empedrar, congelar ou estacionar, onde a linhagem acaba sendo usada como fator ideológico ou político de controle e manutenção, não só do conhecimento, mas do ‘produto’, ou seja, da ‘marca’ que se torna a linhagem, limitanto e empobrecendo assim a própria arte e o próprio conhecimento.

Linhagem como manutenção de poder

Se, como problematizado no título anterior, a linhagem é usada como controle, ela resulta também em manutenção de poder, onde o suposto discípulo e agora mestre-patriarca da linhagem, detém o poder sobre o conhecimento e consequentemente sobre seus alunos. Assim ele pode manter sua escola economicamente viável (nada contra, mas não é só isso o que deve estar em questão) sob a sombra da linhagem ou do discurso que, em muitos casos, ela se reduz. Aí temos um problema. A linhagem em questão acaba sendo mais figurativa, simbólica e/ou representativa do que real. Ou seja, o conhecimento que ela traz em si se aplica como inquestionável, imutável, inabalável, até que algo ou alguém prove contrário. Neste caso, a linhagem é tomada por um conservadorismo que a mantém viva, mas sobre a égide do autoritarismo e do discurso, mais do que da necessidade e realidade que deveria a justificar e fundamentar. Portanto, não é só porque uma escola, associação ou professor tem linhagem que é bom. Isso, geralmente, é discurso ideológico ou senso comum. Assim como dizer que, por não ter linhagem (em específico) é ruim, sendo que, as coisas não se realizam plenamente pelos discursos alinhados com uma suposta verdade absoluta, mas sim pela realidade prática. Nisso, ter ou não ter linhagem, é uma questão de necessidade (ou pelo menos, deveria ser) e não por uma mera manutenção de poder (negócio) e status.

Com isso, de modo algum estou negando a importância e papel das linhagens. Volto a dizer, estou apenas problematizando uma questão quase ‘intocável’ nos assuntos ditos marciais. Desconfio sempre de quem extremisa a questão a ponto de dizer que ‘se não tem linhagem não é bom ou é picaretagem’, assim como quem diz que ‘linhagem não passa de tradição’. Ambos os casos são equivocados e encontram-se nos extremos de seus discursos ou crenças  ideológicas. Existe escola com uma linhagem específica, assim como, escola com mais de uma linhagem, onde o mestre representa mais de uma família (ou linhagem), e também escola sem linhagem alguma, onde se estuda a partir de variadas experiências, mas não se representam especificamente ou oficielmente elas. Nem numa, nem outra é melhor ou pior, isso é relativo e depende mais da prática no real do que daquilo que se acha, acredita ou diz. Quem comanda no final é a necessidade e sinceridade com o que se sabe, conhece e pratica. O mais é política (no sentido de tomar partido: defesa e ataque com determinismo e simplismo, prática muito comum, infelizmente, no meio dito marcial).

Enfim. Tendo linhagem ou não, o Kung Fu existe e é justamente rico por sua diversidade e nas suas variadas possibilidades, sendo mais que uma luta, um esporte, uma prática física, uma linhagem. Kung Fu em uma concepção mais ampla é um caminho de vida e não um lugar.

Herman Silvani (estudante/praticante, sifu/professor de Wing Tjun Kung Fu e Chi Kung na AFWK, filosofia, sociologia, história e linguagem - e estudante/praticante de Tai Chi Chuan Pai Lin)



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